Feminismo não-modificado #14 – Carta aberta contra o Lesbocídio e em defesa dos direitos das mulheres baseados no sexo
Diante do brutal assassinato da jovem Ana Caroline Sousa Campêlo, a Coletiva MARIZ elaborou uma carta aberta para os Ministérios da Mulher e dos Direitos Humanos e da Cidadania
Cara leitora,
Como você está? Nós, da MARIZ, não estamos nada bem. É impossível, enquanto mulheres feministas, de esquerda, anticapitalistas e antirracistas, não sangrar diante da história do assassinato de Ana Caroline Sousa Campêlo, uma jovem lésbica de apenas 21 anos, noticiado na última semana.
A revolta nos levou a escrever uma carta aberta, endereçada aos Ministérios da Mulher e dos Direitos Humanos e da Cidadania, para cobrar atenção e políticas públicas voltadas para mulheres lésbicas. E agora, a gente precisa de assinaturas de mulheres e de coletivas para levar esse texto adiante.
Você confere o conteúdo da carta a seguir. Para assinar, basta clicar aqui.
Brasília, 19 de dezembro de 2023.
Ao Ministério das Mulheres e ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
Nós, da Coletiva Mulheres Autônomas Raiz (Coletiva MARIZ), enquanto mulheres feministas, de esquerda e antirracistas, vimos por meio desta carta aberta denunciar o lesbocídio de uma jovem lésbica e cobrar medidas sobre políticas reais contra a lesbomisoginia cotidiana no Brasil. Também vimos exigir que os Ministérios das Mulheres e dos Direitos Humanos e da Cidadania se baseiem em critérios objetivos para elaborar políticas públicas destinadas às lésbicas neste país.
Ana Caroline Sousa Campêlo, uma jovem lésbica, negra, de apenas 21 anos de idade, foi torturada e assassinada na semana passada: teve seus olhos, orelhas, pele do rosto e do couro cabeludo arrancados. A polícia não se mobilizou nas buscas por Ana Caroline após a família se queixar do desaparecimento desde a madrugada do dia 10 de dezembro, em Maranhãozinho (MA). Quem a encontrou sem vida foram suas amigas. O caso só teve repercussão na quinta-feira, dia 14 de dezembro.
O brutal assassinato de Ana Caroline e a ausência de cobertura midíatica do caso traz novamente à tona a invisibilidade da realidade das lésbicas e o apagamento deliberado da violência lesbomisógina em nosso país. Um dos resultados disso é o fato de que, até hoje, as autoridades locais não encontraram os responsáveis pelo assassinato.
Primeiramente, é importante frisar que Ana Caroline foi vítima de lesbocídio:
“O lesbocídio, diferente do feminicídio, não é um ato que possui tão recorrentemente características domésticas e familiares [...]. São hegemonicamente tentativas de extermínio, catalogadas como crimes de ódio e motivadas por preconceito. São ações que demonstram a inabilidade de alguns segmentos da população de aceitarem as lésbicas e as respeitarem como pessoas em igualdade de direitos e deveres constitucionais.” (DOSSIÊ SOBRE LESBOCÍDIO NO BRASIL, 2018, p. 19)
O lesbocídio cometido contra Ana Caroline veio confirmar algumas estatísticas que temos graças ao Dossiê sobre lesbocídio no Brasil de 2014 a 2017, indicando que a maioria das vítimas estão na faixa etária entre 20 a 24 anos. Em relação aos assassinatos, 55% das vítimas eram não-feminilizadas, 57% lésbicas negras e 65% ocorreram nos interiores dos estados do país.
Ainda assim, os dados sobre lesbomisoginia no Brasil são escassos, o que escancara a invisibilidade da população lésbica. Elencamos algumas propostas urgentes para o enfrentamento dessa negligência, que encaminhamos aos dois Ministérios endereçados:
Criação de uma pasta específica para lésbicas no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, uma vez que lésbicas têm interesses que não podem ser misturados com interesses das pessoas do sexo masculino da comunidade LGBT;
Parcerias entre o Ministério das Mulheres e grupos de pesquisas sobre violências contra lésbicas para haver uma integração de dados regionais e nacionais sobre a realidade das lésbicas brasileiras;
Instituição de audiências obrigatórias e periódicas para diálogo direto entre a ministra Cida Gonçalves, o ministro Silvio Almeida e ativistas lésbicas autônomas, para que os supracitados Ministérios estejam em constante atualização sobre os anseios e as queixas da comunidade lésbica brasileira.
Para além dessas mudanças, apoiamos e reiteramos as necessidades urgentes listadas em carta aberta (link na bio) elaborada por lésbicas autônomas em revolta ao lesbocídio de Ana Caroline:
A imediata investigação do lesbocídio de Ana Caroline;
A investigação de todos os lesbocídios ocorridos no Brasil;
O apoio às viúvas, ex-companheiras e familiares das vítimas por meio de suporte psicológico, econômico e jurídico;
A implementação da Lei Luana Barbosa a nível nacional;
A implementação de um calendário nacional de enfrentamento ao lesbocídio;
A realização de estudos e pesquisas para a criação de instrumentos de registro de orientação sexual em documentos oficiais do Estado das áreas de segurança pública e saúde, em todo o território nacional, que preservem a integridade e identidade dos indivíduos e contribuam para investigações e geração de dados;
Realização da coleta, processamento e análise de dados produzidos pelo Estado Brasileiro sobre a população lésbica que orientem a criação de políticas públicas específicas para este grupo; e
Tipificação do crime de lesbocídio.
Além disso, acreditamos que políticas públicas podem ser fundamentais no combate à lesbomisoginia. Entretanto, tais ferramentas de mitigação de problemas estruturais devem levar em consideração as queixas da população para a qual elas se direcionam. Por isso, repudiamos o financiamento por parte do Ministério das Mulheres à segunda etapa do Lesbocenso – uma pesquisa que, desde a sua primeira etapa, demonstrou descaso com seu próprio público alvo: lésbicas, além de ter ignorado completamente as críticas à sua metodologia. À época, lésbicas feministas se manifestaram em desacordo com a abordagem do formulário utilizado pelo Lesbocenso, no qual havia um campo de resposta obrigatória sobre “escala de masculinidade e de feminilidade” pessoal, além da compulsoriedade de resposta acerca de “identidade de gênero” das respondentes.
Ofendidas com a suposição de que há uma “masculinidade” ou “feminilidade” intrínsecas na existência lésbica e recusando-se a se definir segundo conceitos misóginos tais como “cisgênero” ou “não-binária”, coletivas de feministas e lésbicas autônomas buscaram dialogar com as organizadoras do Lesbocenso de modo a discutir alternativas àquela categorização arbitrária. Entretanto, as críticas foram sumariamente ignoradas.
Causa-nos indignação que um Ministério que se propõe a servir a todas as mulheres brasileiras esteja financiando uma pesquisa extremamente problemática, lesbomisógina e que, sobretudo, se recusa a dialogar com movimentos de lesbofeministas autônomas, dificultando a criação de políticas públicas realmente eficazes para a população lésbica.
Portanto, ressaltamos que, para que seja possível criar leis de proteção a mulheres lésbicas e atender às especificidades destas, é imprescindível que a definição de mulher seja baseada no sexo e não no gênero, como está sendo imposto em todos os âmbitos institucionais, onde não tem havido qualquer abertura para propostas divergentes. Para proteger mulheres lésbicas e evitar aberrações conceituais lesbomisóginas tais como as do Lesbocenso, é preciso não apenas definir o que é ser uma mulher, mas também o que é ser uma lésbica. Lésbicas estão sendo extintas não somente por meio do lesbocídio, mas também por meio do apagamento pela linguagem dita “neutra” e a ressignificação de termos, incluindo a definição de “lésbica”.
Tal apagamento tem vindo da comunidade LGBT contemporânea, que é dominada pelos interesses exclusivamente das pessoas do sexo masculino da sigla. Essa comunidade afirma que “lésbicas possuem pênis”, mas a lésbica que ousar dizer que se relaciona apenas com mulheres “biológicas” é chamada de genitalista e perseguida dentro do próprio movimento. Fora a pressão pela “transição de gênero” de lésbicas não-feminilizadas como era Ana Caroline (em um tweet após a repercussão do caso, Érika Hilton chamou a namorada da vítima por pronome neutro, um desrespeito sem tamanho ao relacionamento abertamente lésbico das duas). Ser lésbica é um ato contra a dominação patriarcal do corpo da mulher, ser lésbica é um ato político de rebeldia ao heteropatriarcado. Não aceitaremos que lésbicas sejam coagidas a práticas sexuais que as domestiquem à heterossexualidade.
A lesbianidade é uma sexualidade excludente, pois ela exclui o pênis da relação e esta é a definição de uma lésbica. Se quem possui pênis passa a ser considerado mulher, a lésbica é extinta. Esse é, no entanto, o maior crime da mulher lésbica aos olhos do patriarcado: a recusa ao pênis. Os limites da sexualidade são borrados com as novas definições de lésbica baseadas no “gênero”, e não há outro nome para isso que não seja cura lésbica e lesboódio, além de estupro corretivo. O corpo da mulher lésbica não é espaço de validação de “identidade” de quem quer que seja, a lésbica que recusa a relação afetivo-sexual com o sexo masculino não está discriminando ninguém.
Perguntamo-nos, adicionalmente, qual tem sido o papel do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em relação à agenda de combate ao lesbocídio e à lesbomisoginia, uma vez que, apesar de possuir uma pasta dedicada à comunidade LGBT, tal órgão não se mobilizou em relação ao caso do lesbocídio da Ana Caroline, tampouco tem se dedicado às especificidades das mulheres lésbicas ao longo desse primeiro ano desde que foi criado – pelo contrário: nos últimos dias, o Instagram do Ministério tem exibido divulgação de ações de “celebração” de histórias “inspiradoras” da comunidade LGBT, algo completamente ultrajante de ser postado num momento de plena comoção nacional diante do caso de uma lésbica assassinada.
Dizer a verdade e descrever a realidade tal como ela se encontra não é discurso de ódio. Mas perpetuar alianças com grupos contrários aos direitos das mulheres e das lésbicas é um verdadeiro ódio institucionalizado, misoginia e lesboódio em seu auge. Que os Ministérios das Mulheres e dos Direitos Humanos estejam se curvando a agendas explicitamente anti-feministas é não somente uma grande hipocrisia, como também uma afronta às mulheres no geral e às lésbicas em particular.
“Os direitos das mulheres têm como base a realidade de se viver em um corpo física e qualitativamente diferente do corpo dos homens. O que diferencia homens e mulheres e torna as duas categorias reconhecíveis é o seu sexo biológico. Qualquer outra forma de se definir homens e mulheres, que não leve em conta a diferença sexual, se baseia tão somente em estereótipos misóginos e sexistas. Reconhecer a realidade do sexo não é essencialismo; atribuir feminilidade a uma pessoa do sexo masculino porque ela acredita que é uma mulher e expressa isso pela vestimenta e por uso de signos culturalmente atribuídos a mulheres, por outro lado, é bastante essencialista.” Artigo 1 da Declaração dos Direitos das Mulheres Baseados no Sexo da WDI Brasil (https://wdibrasil.com/artigo-1/)
Vem comprar essa briga com a gente. Assine aqui a carta aberta!
Até a próxima!