Feminismo não-modificado #12 - Mariz e o mês da visibilidade lésbic
Querida leitora,
Como você está? Depois de um tempo sumidas daqui, voltamos com força total.
Não estávamos paradas, é claro. Foram alguns meses de organização interna e de tentativas de composições com outros coletivos que foram infelizmente frustradas. Damos um doce para quem adivinhar o motivo! Feministas centradas em mulheres não são sempre tão bem vistas como queríamos.
Uma dessas tentativas de composição foi a 19ª Ação Lésbica Feminista que se deu em agosto, o mês da Visibilidade Lésbica.
Saca só a estética dessa ação:
Dá até uma esperança, né? Qualquer coisa com a Labrys no meio desperta nosso carinho imediato. Dá uma aquecidinha no coração. Nossas membras participaram de algumas dessas atividades enquanto esperávamos ansiosamente pela maior de todas: a “caminhada lésbica e sapatão”.
Prestigiamos a exibição do filme Ferro’s Bar no Cine Brasília, um documentário com entrevistas de algumas das mulheres lésbicas que participaram da famosa manifestação que deu origem ao Dia do Orgulho Lésbico (19 de agosto).
O filme é muito interessante e essencial para entendermos mais sobre a história do movimento de mulheres lésbicas no Brasil. Após a exibição, houve um debate com as realizadoras do curta-metragem, porém as membras da MARIZ decidiram não participar, porque, dentre outros motivos, as organizadoras da exibição do filme começaram a usar da retórica de “inclusão” das “diversidades” e de “todes” em um evento que deveria ser única e exclusivamente dedicado às lésbicas.
Sabíamos que estávamos lidando com organizações queer aliadas, como a Coturno de Vênus e a própria Ação Lésbica Feminista DFE. Uma breve passeada pela página do Instagram desses coletivos já deixa isso bem claro – vocês provavelmente devem lembrar do show de horrores que foi aquele Lesbocenso Nacional, liderado pela Coturno de Vênus no ano passado. É realmente uma pena que esses sejam os dois coletivos de maior destaque na representação das lésbicas do DF.
E por saber quem eram os coletivos por trás da organização da caminhada, tivemos muitas reuniões para planejar nossa participação. O silenciamento covarde que vivemos é tamanho que tivemos que nos atentar a detalhes que não deveriam tomar tanto da nossa energia e empenho, coisas como: será que seremos atacadas caso a gente leve a bandeira da Labrys? Será que teremos o desprazer de nos deparar apenas com aquela pavorosa bandeira “lipstick”?
É realmente chocante que um movimento que tem a Labrys considere usar uma bandeira de “50 tons de rosa”, com uma marca de batom numa tentativa cretina de naturalizar a feminilidade imposta pelo patriarcado. Como se a nossa opressão fosse motivo de orgulho e celebração.
Sentimos a necessidade de colocar todos esses questionamentos no papel, para uma ação como Coletiva MARIZ, produzindo uma zine a várias mãos. E fizemos um bom conteúdo, viu gente? Transcrevemos um vídeo da QG Feminista que fala sobre a história da nossa bandeira Labrys e critica a bandeira “lipstick”, seguido de um texto maravilhoso da saudosa GARRa Feminista sobre o apagamento das lésbicas e o ataque de transativistas contra as discordantes de sua seita misógina.
Além disso, pensamos em cartazes que exaltassem a memória lésbica, homenageando nomes como o de Rosely Roth, co-fundadora do Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) em 1981. Uma de nossas membras compôs versos afrontosos de verdade para gritarmos no megafone:
Chana com chana
Rebeldia sapatão
É com essa chama
Que se faz revolução
Lésbica, sua recusa do falo
Das raízes, ancestral
É o verdadeiro calo
Do poder patriarcal
Chana com chana
Além de bacana
Ao retirar o macho da cama
O patriarcado perde uma ama
Apesar de não saber como isso seria recebido, estávamos animadas com essa ação nas ruas do DF. Nosso zine já estava impresso e já tínhamos uma oficina de confecção de cartazes agendada, quando nos deparamos com uma publicação, poucos dias antes da caminhada, dizendo que não haveria mais marcha, mas um evento com um trio elétrico ficaria parado no Eixão Sul.
Você leu isso mesmo: um movimento social de Brasília organizou um ato no centro do poder, mas esqueceram do detalhezinho de acertar a ocupação da rua com a Polícia Militar. Sobrou o gramado.
Foi como um balde d’água nas nossas expectativas. A Ação Lésbica Feminista DFE divulgou uma arte que dizia “Se prepara que vai ter trio elétrico!”. Foi frustrante perceber que seria provavelmente só mais um evento despolitizado, mais uma festinha de rua para o público woke. Não dá pra dizer que ficamos realmente surpresas, mas é frustrante.
Não tinha mais clima para fazer cartazes ou usar megafone. É completamente surreal pensar que, se chegássemos com nossos cartazes e entoando nossos gritos, as pessoas simplesmente não entenderiam, porque a “caminhada” do mês da Visibilidade Lésbica virou uma micareta de mau gosto. Seria cômico se não fosse trágico.
Mas não nos demos por vencidas. Ainda tínhamos nossos zines e nossa bandeira da Labrys e, no dia 27/08, comparecemos ao evento sem grandes expectativas. Ao chegar, logo entendemos que a “caminhada” parecia mais um grande piquenique – com lésbicas espalhadas num gramadão, sentadas nas suas cangas, quietinhas e curtindo a paisagem. O ponto positivo foi ter visto a bandeira Labrys no trio elétrico – alegria que foi logo esmorecendo ao ver que nossa bandeira dividia espaço com a bandeira Damares Alves (aquela em tons de rosa para menina e de azul para menino). Aparentemente, a Labrys não é suficiente no mês da Visibilidade Lésbica, ela deve ser ofuscada pela bandeira Damares Alves, como mostram as fotos dos eventos organizados nesse mês.
Não custa lembrar que também contamos com a presença de pessoas do sexo masculino que se identificam como “mulher trans lésbica”, usando blusa com os dizeres “siga bem caminhoneira”.
A “marcha” ainda contou com uma apresentação de percussão e, em seguida, a DJ do trio elétrico começou a tocar música convidando, quase numa súplica, as mulheres a se levantarem e irem ocupar o Eixão dançando. Meia dúzia de gatos pingados se levantaram e o que já era um evento desprovido de qualquer ação política virou uma festinha totalmente flopada, quase patética. A chuva chegou para fazer com que as mulheres finalmente se levantassem para ir embora e dar fim a esse evento bastante constrangedor.
No final, não panfletamos nossos zines. Sentimos que o ambiente não combinava com a proposta de trazer a crítica radical para lésbicas. Nós criamos expectativas que foram frustradas: nos organizamos para um ato político, que se mostrou um dia de celebração despolitizada – como se a história das lutas lésbicas se resumisse a isso…
Ignoraram completamente o legado das que nos antecederam. Esqueceram-se de Rosely Roth, que liderou o protesto no Ferro’s Bar e que com certeza ficaria completamente incrédula com essa “ação lésbica”. Não nos entenda mal: celebrar a existência das lésbicas é mais do que necessário – é o que nos mantém vivas! Porém, além de a Ação Lésbica desse ano ter contado com diversos outros momentos de lazer e descontração, o que aconteceu naquela “marcha parada” (uma contradição em termos) foi uma insinuação, por parte de suas organizadoras, de que os direitos das lésbicas já estão plenamente garantidos. Afinal, quem precisa discutir heterossexualidade compulsória? A lesbofobia está tão superada que já não corremos mais risco de vida só por sermos quem somos, não é mesmo?
Certamente, Rosely e as demais lésbicas que lutaram por nós há anos olhariam atônitas para isso tudo e se perguntariam onde foi que erramos.
Considerando essa experiência frustrada, e fazendo o nosso mea culpa, entendemos que nós, enquanto MARIZ, não soubemos driblar essa quebra de expectativa e nos colocar presentes naquele ambiente, ainda que ele não fosse exatamente o que esperávamos. Deveríamos ter panfletado os zines de qualquer jeito? Deveríamos tentar estabelecer uma conversa politizada com as lésbicas, ainda que elas aparentemente só quisessem se divertir? Não sabemos como responder essas perguntas.
Sabemos, no entanto, que precisamos aprimorar nossas estratégias de comunicação e precisamos lidar com esses percalços. É necessário nos aproximar de mais mulheres e compartilhar nossos conhecimentos sobre a teoria feminista que nos guia: aquela não-modificada.
Aquela centrada única e exclusivamente em quem realmente importa: fêmeas humanas.
Fiquem atentas e até a próxima!